domingo, 25 de maio de 2008

Arabi Rodrigues, poeta do pampa

Celso Pitol Filho

Otto Maria Carpeaux dizia que a cultura popular era algo importante demais para ficar nas mãos dos intelectuais. Essa bela amostra do refinado senso de humor do historiador austro-brasileiro é também um libelo contra a intromissão de certas teorias que tentam - ou tentavam, porque andam em desuso - explicar as coisas do povo dentro de linhas evolutivas e processos históricos, como se a arte - ou a música, ou a poesia - de origem popular fossem um mero estágio inicial de cultura à espera de desenvolvimento.

Essas teorias transformam o povo em mero joguete para seus ímpetos classificatórios e nos ensinam a desprezar Homero, o Antigo Testamento, as sagas islandesas, as odes anglo-saxônicas, o Martin Fierro, todos os cancioneiros nacionais e outros exemplares insuspeitos de clássicos oriundos da massa iletrada que o cânone letrado aceita. Tais criações seriam, no máximo, produtos de época, bons para figurar nas primeiras páginas da historiografia literária ocidental como documentos de um tempo bárbaro e rude já passado há muito e sem ressonâncias notáveis no presente. Assim o classificam - até porque classificar é algo muito próprio deles.

Felizmente, Arabi Rodrigues não se classifica. Quando perguntam a este grande payador gaúcho, nascido em Dom Pedrito e há muito tempo morador de Novo Hamburgo, na Grande Porto Alegre, se sua poesia é popular ou erudita, ele confessa que não sabe dizer. E não precisa mesmo. O homenageado na abertura da Feira do Livro, na última sexta-feira, em cerimônia realizada no Centro Cultural Érico Veríssimo - quando recebeu a medalha “Jayme Caetano Braun” do mérito gaúcho 2007″, conferida pela União Brasileira de Trovadores - , sabe muito bem que as classificações por gêneros não são estanques e, sobretudo, que elas são um trabalho a ser feito posteriormente. Não é tarefa do verdadeiro poeta definir-se a si próprio. Isso o faz a crítica.

Talvez o assunto peça outra pergunta. A poesia de Arabi - e vamos defini-la desta forma, mais justa do que o uso indiscriminado de adjetivos - bebe em quais fontes? O que ele leu e ouviu para escrever e cantar? Arabi aprendeu a fazer payadas com um negro uruguaio analfabeto que lhe ensinou a rigorosíssima métrica da poesia gauchesca. Por esse lado, é claramente popular. Ao mesmo tempo, venera Camões, Cervantes e toda a tradição literária ibérica - em sua biblioteca há um grosso volume antigo de poesia popular açoriana, outro do argentino Hilário Ascasubi, outro de poesia portuguesa e outro da espanhola - uma tradição , que, segundo ele, nenhum poeta que viva num espaço de confluência como o Rio Grande do Sul tem o direito de ignorar. Nesse sentido, a poesia de Arabi é bem popular, já que toda poesia verdadeiramente popular é tradicional. Os antigos aedos gregos sabiam épicos inteiros de cor e seguiam regras muito estritas ao declamá-los, sob pena de perderem o sagrado posto que ocupavam. O povo faz o mesmo com os poetas que subvertem as regras.

Até gênios como Whitman tentaram desesperadamente soar populares ao abolir a rima e a métrica, julgando abolir também o caráter aristocrático da poesia para devolvê-la ao povo - e fracassaram totalmente. Borges notou certa vez que os cantores do interior da Argentina tentavam compor no espanhol mais castiço que podiam e cuidavam escrupulosamente a rima, ainda que, no dia a dia, parecessem ignorar a conjugação de todos os verbos. Claro: tinham a poesia em alta conta e a tratavam como algo distinto, quase sagrado.

Araby pertence sobretudo a esta última tradição: a dos cantadores gauchescos. Sua matéria é o pampa, terra sem fronteiras que se estende por quatro países e reúne todas as raças que povoaram a América. E Arabi , como homem da fronteira, bilíngue e binacional, sente-se igualmente à vontade em Buenos Aires, Montevidéu, Artigas, Uruguaiana, Rio Grande ou Santiago Del Estero. Basta alguns minutos de conversa íntima com ele para ouvirmos que “no hay diferencia” entre os países do pampa, que tal poema ou autor é “muy lindo” e que sua poesia não pretende tomar o lugar de “nadie”, já que para todos “hay espacio”. A mistura sai livremente. Lembra a caracterização do uruguaio Julián Murguia em “Contos do País dos Gaúchos” daqueles homens falando uma mistura de português e espanhol, indo e vindo por cima de uma fronteira que não existia”.
Binacional é o poeta, e sua poesia também. Arabi é um representante brasileiro da payada, estilo não só pampeano como também andino e chaquenho, presente portanto em praticamente metade da América do Sul. Tanto é que ninguém sabe precisar se a origem da palavra é castelhana, portuguesa, guarani ou quíchua. O payador é primo do repentista e dos cantadores sertanejos e caipiras, acompanhado ou não de música. Payador foi o mítico Santos Vega e também Juan Nava e Gabino Ezeiza, todos argentinos, payador foi o germânico (com sangue indígena) Jayme Caetano Braun, payador foi o negro analfabeto e anônimo que ensinou Arabi a rimar, foi o basco Hilario Ascasubi, que o portenho Borges venerava - e Borges, autor de um livro de milongas e de muitos poemas de inspiração gauchesca, também tem algo de payador. Esse negro anônimo e tantos anônimos de todas as cores sentam à beira do mesmo fogo de chão à espera da vez para declamar. A payada é, como nenhum outro estilo, a música da América Latina por excelência, espaço onde se congregam, e sob vários títulos, as muitas linguagens e cores que compõem o mais colorido dos continentes.

Um espaço tão vasto e variado como este inspira, como poucos, a imaginação do poeta. A seguir, fragmentos de alguns poemas de Arabi Rodrigues, pequena parte de uma grande produção que já conta vários volumes. Os excertos são do livro “Marcas do Tempo”, publicado em 1997.


Da copa do cerro grande,

avô dos cerros de volta,

a vista ganhou distância

por entre as coxas de pedras,

por onde passa a sanguinha

que deságua no arroio.

No fim dos olhos compridos,

o dia chega cansado

no bivaque do poente

prádespir-se do motivo

do suor dos nossos dias,

mas uma réstia teimosa,

insiste em ser refletida

na prata das Tres Marias.

(Jarau)

“Ao passo lento dos dias,
As horas vão engolindo
A distância dos andantes,
Que buscam apenas um lume,
Sem pretensão de chegar.
Essa paciência arrastada
Que dilata os horizontes,
É só um pequeno trecho
Que a gente precisa andar”

(Caponete)

……………………

“Depois de chegar no topo
Da Cordilheira dos Andes,
a pampa surgia grande
Como promessa divina;
a libertade apontava
o vento mostrando o rumo
Para quem chegava de longe
Para fazer pátria no sul.
O verde e o céu azul
Se abraçavam na distância,
como miragem da infância
Que o tempo guarda no prumo”

(El Peon Arriero)

4 comentários:

Anônimo disse...

don arabi,
un grand saludo ao irmão de pátria e querência...
parabéns pela coragem e sensibilidade nos versos de denúncia sobre o caso dantas...
esse togado do stf, que não se sabe de onde veio, precisa escutar os teus versos e tomar vergonha na cara...
um grande abraço gaúchesco e latino-americano
juan roz

Anônimo disse...

don arabi,
un grand saludo ao irmão de pátria e querência...
parabéns pela coragem e sensibilidade nos versos de denúncia sobre o caso dantas...
esse togado do stf, que não se sabe de onde veio, precisa escutar os teus versos e tomar vergonha na cara...
um grande abraço gaúchesco e latino-americano
juan roz

Giovanna disse...

Don Arabi,
Eu gostaria de saber se o sr. conseguirias para mim a poesia Vestido Novo, estou atrás dela há tempos.
Obrigada, um abraço!

Anajá Schmitz disse...

Oi, que alegria te encontrar neste blog. Gosto muito do seu trabalho e ha muito tempo procuro uma poesia que não sei o nome mas ouvi o senhor declamando e até hoje não sai do meu pensamento. " agora pouco o andejo sentou pra matear comigo.....
se puderes me enviar, ficarei eternamente agradecida.
Anajá Schmitz